Problematizando a construção de histórias e memórias da cidade através de fotografias

Simpósio A fotografia na construção da memória da cidade
13 de novembro de 2008 - 14h10

Coordenação: Cornelia Eckert (BIEV e NAVISUAL UFRGS)
Palestrantes: 
Denise Stumvoll (Museu de Comunicação Hipólito José da Costa) - Os frágeis suportes da memória. Preservação e acesso ao banco de imagens do acervo fotográfico/Musecom  
Zita Rosane Possamai (Faced - UFRGS) - Cidade, fotografia e memória: considerações sobre os álbuns fotográficos de Porto Alegre
Charles Monteiro (PUCRS) - Problematizando a construção de histórias e memórias da cidade através de forografias
Debatedor: Ana Luiza Carvalho da Rocha  (BIEV, PPGAS, UFRGS)


Problematizando a construção de histórias e memórias da cidade através de fotografias
Charles Monteiro (PUCRS)
Doutor em História Social pela PUCSP (2001) com estágio sanduíche na Université Lumière (Lyon 2), Professor Adjunto de História no Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS.



Gostaria de agradecer às organizadoras, em especial, à Ana Luiza Carvalho da Rocha e à Cornelia Eckert pelo convite para participar desse II Clique.
Falo do lugar do historiador que pesquisa sobre História Urbana e que entende que a visualidade é uma forma privilegiada de problematizar as dinâmicas sociais, políticas, econômicas e culturais das sociedades urbanas contemporâneas. 
Venho desenvolvendo uma linha de pesquisa sobre História, Fotografia e Cidade no Programa de Pós-Graduação de História da PUCRS, onde através de seminários sobre História e Fotografia e um Grupo de pesquisa História e Fotografia ligado ao Laboratório de pesquisa da Imagem e do Som temos desenvolvido pesquisas e orientado trabalhos já há algum tempo.
      Em que contexto e em resposta a que demanda social nos mobilizamos para problematizar, procurar, selecionar, conservar, sistematizar e disponibilizar acervos visuais sobre a cidade no início do século XXI?
      As respostas são múltiplas e poderiam começar pelo diagnóstico da crise da cidade, da crise da consciência histórica do século XX ou da crise da memória.
      Cidades super-populosas, com grande desigualdade social, complexidade espacial, velocidade de mudanças e conflitos entre os grupos. Um novo imaginário de cidade que envolve questões como poluição, problemas de saúde pública, exclusão, marginalidade, violência e inoperância do Estado frente às demandas crescentes dos diferentes grupos da sociedade.
      Crise da modernidade (princípios como progresso, ordenamento social e a razão prática) e crise da consciência histórica (das grandes narrativas ou matrizes explicativas), não há mais projetos de futuro para o conjunto da sociedade e tão pouco um horizonte de expectativa de mudança na curta ou média duração.
      Crise da memória diante de um passado tido como encerrado e cada vez mais distante do presente, a necessidade de materializar esse passado e transformá-lo em lugares de memória através de uma operação histórica. A necessidade de materializarmos e multiplicarmos a presença desse passado frente a crise do presente e da consciência histórica.
      Que memória? De quem e para quem podemos oferecer nesse contexto de falência do estado nação e da credibilidade das instituições? Que passado, que práticas sociais e de que grupos o historiador vai assegurar a reflexão?

      Discute-se a necessidade de democratização da memória, de assegurar a conservação e o acesso ao passado pelos diferentes grupos, etnias e gêneros, etc. que compõe a sociedade atual. Mas quais são os sujeitos, os lugares e os meios para promover essa democratização da memória? Frente à crise das instituições públicas (financeira e administrativa), a crescente importância das instituições privadas com incentivos públicos e particulares (incentivando um mercado de bens culturais)?
      Qual o papel da Universidade e do pesquisador diante de um quadro crescente de demandas e uma escassez de meios e de “autoridade”?
      É possível pensar uma “história visual”? Ao escolhermos como meio de pensar as problemáticas que envolvem o fenômeno urbano no passado e na contemporaneidade? Que tipos de desafios se colocam para pensar e trabalhar esse tipo de memória para construir uma história visual da cidade?
      Segundo Meneses, a História Visual não é mais uma fatia de uma “história em migalhas”, como diria François Dosse, mas “um campo de operação de grande valor estratégico para o conhecimento histórico, na sua organização, funcionamento e transformação”.
      Segundo o autor, não haveria uma especificidade epistemológica para reivindicar a criação de uma área nova. 
      Já para Martin Jay, em Vision in context,  afirma que estaríamos vivendo um pictorial turn depois do linguistic turn dos anos 1960.
      Para Nicholas Mirzoeff, em Una introducción a la cultura visual, a cultura visual é uma estratégia para compreender a vida contemporânea, e não uma disciplina acadêmica. Lembra que a cultura pública dos cafés do século XVIII, exaltada por Jürgen Habermas, e o capitalismo impresso do mundo editorial do século XIX, descrito por Benedict Anderson, foram características particulares de um período e centrais para a análise produzida por esses autores, apesar das múltiplas alternativas que poderiam ter escolhido. À maneira desses autores, Mirzoeff procura compreender a resposta dos indivíduos e dos grupos aos meios visuais de comunicação em uma estrutura interpretativa fluida.
      O que é certo é que os problemas relacionados ao visual e a visualidade tem despertado cada vez mais interesse juntamente com outras dimensões da experiência sensorial.
      Devemos-se pensar a dimensão visual presente na dinâmica e no todo social. Para isso, segundo o autor, é necessária a organização de um quadro de referências, problemas, instrumentos conceituais e operacionais relativos a três grandes feixes de questões: o visual, o visível e a visão. Não se tratam de dimensões estanques, mas simplesmente de “espaço gravitacionais”. 
      Em “Rumo a uma ‘História Visual’”, Meneses propõe que o estudo desse campo se realize a partir da reflexão sobre três domínios complementares: o visual, o visível e a visão (MENESES, 2005: 33-56). 
      O domínio do visual compreenderia os sistemas de comunicação visual e os ambientes visuais, bem como “os suportes institucionais dos sistemas visuais, as condições técnicas, sociais e culturais de produção, circulação, consumo e ação dos recursos e produtos visuais”, para poder circunscrever “a iconosfera, isto é, o conjunto de imagens-guia de um grupo social ou de uma sociedade num dado momento e com o qual ela interage” (MENESES, 2005: 36). 
      Para Meneses, o domínio do visível e o do invisível situa-se na esfera do poder e do controle social, do ver e ser visto, do dar-se a ver ou não dar-se a ver, da visibilidade e da invisibilidade (MENESES, 2005: 36). Já a visão “compreende os instrumentos e técnicas de observação, o observador e sés papéis, os modelos e modalidades do olhar” de uma época (MENESES, 2005: 38).
      Quais são os quadros sociais dessa memória visual e que lugares de memória para a experiência social urbana ela constrói? 
      
      As relações entre fotografia e cidade remontam ao início do século XIX e a invenção da fotografia: Nièpce 1826, a Missão Heliográfica (1851)e as transformações da Paris da metade do século XIX e as fotografias de Charles Marville. 
      A relação entre a industrialização, o movimento operário, a criação do urbanismo, a necessidade de organização e controle do espaço urbano no contexto da invenção da fotografia – um novo meio e atualização da experiência do olhar – identificação (documentos/criminosos) e distinção social (burguesia).
      A experiência de um novo olhar, do olhar centralizado do sujeito onisciente do Renascimento para uma multiplicidade de planos e imagens (Nelson Brissac Peixoto. Paisagens Urbanas. Os quadros mecânicos).
      A cidade é um objeto temporal, um espaço de trocas sociais dos movimentos sociais (operário, estudantil, professores, minorias), das vanguardas culturais, lugar do exercício da política (a “polis”), do mercado (da reprodução do capital), imenso artefato material e cultura com os seus equipamentos culturais (escolas, museus, etc.), lugar de conflitos e de tensões. Mas também, lugar de memória e tributário de um imaginário próprio.
      Com seus espaços de reunião, suas fronteiras, sua segregação e especialização espacial. Espaço de práticas do fazer que tecem espaços e se expressam através das artes do dizer (como diria De Certeau), que constroem a compreensão desse fenômeno multifacetado.
      As fotografias promovem um disciplinamento do olhar e acriação de um repertório de lugares e de imagens para construir uma representação de cidade e estabelecer uma memória Coloca-se a necessidade de desconstruir essa lógica e propor novas questões. A importância de pensar sobre a constituição de novos acervos visuais para produzir essa História Visual.
      A necessidade de pensar a fotografia como um artefato material – veiculo ou meio de relações e trocas sociais – diferentes suportes e espaços de circulação. A composição de um acervo heterogêneo (importante) fonte oficiais e acervos privados, profissionais da fotografia, amadores. A importância de historizar ou contextualizar esses acervos de imagens, o seu caminho, a forma de organização, permitir formas flexíveis de consulta e não “fundos fechados” pela sua proveniência, suporte ou datação, permitindo a elaboração de problemáticas transversais e novos problemas sobre a visualidade.
      A questão da acessibilidade dos acervos e as novas formas de consulta a bancos de dados on-line – público em geral e especialistas = preservar o acervo, mas possibilitar a consulta do acervo que permita uma reflexão sobre as técnicas, a materialidade das imagens e a compreensão de sua forma de circulação.   Segundo Boris Kossoy - os acervos digitais são como que um frigorífico de imagens, devido à distância da experiência, a sua falta espessura e perda de singularidade.
      Devesse levar em consideração, para a contextualização desses acervos, a reunião do maior número possível de informações sobre a agência produtora, o fotógrafo, o campo fotográfico como ofício e em relação com a visualidade mais geral (pintura, impressão, meios de comunicação), as técnicas empregadas (câmeras, material sensível, tipo de negativo, positivo), os temas mais freqüentados (com a elaboração de grupos temáticos, descritores e formas de indexação plurais).
      A centralidade dos acervos visuais e dos museus, ao lado da escola, na educação visual das novas gerações, através do uso das imagens (pintura, fotografia, cinema, televisão, etc.) de forma crítica nos processos de ensino e aprendizagem, visando a desnaturalização e a problematização das imagens (em relação às formas de fazer e aos circuitos de consumo) para interpretação das dinâmicas sociais.


      Visando a problematização da construção do olhar – de onde se vê – quem elabora essa representação – quais as agências ou instituições que a conservam e a fazem circular – a importância de um sistema de organização que permita cruzamentos diversos x ao invés de uma linearidade que constrói falsas continuidades. Evitar os riscos da reprodução de marcos institucionais criados pelas próprias administrações visando a se perpetuar no tempo.
      A preservação e a pesquisa de acervos visuais sobre a cidade são uma forma de gerir a passagem do tempo, refletir sobre a elaboração de imagens guia pelo passado frente a uma cidade cada vez mais complexa e fluída no presente. 
      O museu tem a enorme e onerosa tarefa de preservar esses instantes de tempo congelados nas fotografias em seus acervos, que ficam a espera do olho do interprete que produza e problematize essa memória visual da cidade.



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